A TEORIA DA LINGUAGEM DE FERNÃO DE OLIVEIRA


José Borges Neto (UFPR/CNPq)



No momento de se fazer a história do pensamento lingüístico, cede-se facilmente à tentação ou de enaltecer ou de criticar excessivamente nossos antepassados: atitudes inadequadas, todas as duas. Se, por um lado, não seria justo julgá-los com base em nossos conhecimentos, por outro lado, o fato de serem pioneiros, por si só, não lhes confere méritos especiais.

Ao nos voltarmos ao pensamento de Fernão de Oliveira, não podemos esquecer que ele viveu inteiramente no século XVI (nasceu em Aveiro, em 1507, e morreu, provavelmente, em 1581) e que apesar de ser um homem de capacidade intelectual privilegiada e crítico dos modos tradicionais de pensar, seu pensamento não podia exceder significativamente o pensamento médio de um homem do séc. XVI. Em suma, Fernão de Oliveira – padre, soldado e aventureiro, crítico severo da atuação política e religiosa da Igreja em Portugal – é um homem do Renascimento.


1. O contexto.


Qual Janus, o homem renascentista olhava simultaneamente para o futuro e para o passado. Os descobrimentos abriam portas para o futuro. O redescobrimento do mundo clássico abria portas para o passado.

Os estudos lingüísticos não ficaram imunes a esta atitude. Também neles se pode perceber essa atitude bifronte. O pensamento renascentista – conhecido também como humanismo – é um pensamento de transição e os estudos gramaticais por ele gerados são particularmente interessantes por trazerem em si as marcas dessa transição.

O pensamento lingüístico humanista incluía tanto um "humanismo clássico" quanto um "humanismo vernacular", para usar os termos de Juan Zamora (1995, p. 157). O humanismo clássico consistia em recuperar o latim clássico, deturpado pelo uso descuidado dos contemporâneos; o humanismo vernacular consistia em atribuir dignidade às línguas vernáculas e em aplicar a elas os mesmos ideais de correção que se reconheciam no latim clássico.

De alguma forma é exatamente a confluência desses dois humanismos que move Antonio de Nebrija (1441-1522) a escrever, por um lado, suas Introductiones Latinae (1481), uma gramática do latim escrita com o objetivo explícito de recuperar a beleza do latim clássico não mais falado na Espanha, e, por outro lado, sua Gramática de la Lengua Castellana (1492), aplicação genial da teoria gramatical latina aos dados do castelhano.

Atitude semelhante pode ser encontrada em João de Barros (1496-1570), contemporâneo de Fernão de Oliveira, que publica em 1540 a sua Grammatica da Língua Portuguesa juntamente com o Diálogo em Louvor de nossa Linguagem, com o objetivo explícito de ensinar a gramática do português para que as crianças tivessem facilitado o acesso à gramática do latim, o objetivo principal do estudo gramatical.

Para os renascentistas, o latim é considerado uma língua superior às outras (particularmente às línguas vernáculas, que no fundo não são mais do que corruptelas do latim clássico) e, portanto, quanto mais uma língua se parecer ao latim, mais perfeita será considerada. Parte importante dos esforços para a valorização das línguas vernáculas, então, será empreendida na demonstração de que as línguas vernáculas têm estrutura semelhante à do latim. Não se poderia esperar, então, que o modelo gramatical adotado fosse outro que não o modelo latino, assim como não se poderia esperar que a atitude dos gramáticos fosse outra que não a de ver as gramáticas das línguas vernáculas como reflexos das gramáticas do latim. As gramáticas de Nebrija, para o castelhano, e as gramáticas de Fernão de Oliveira e João de Barros, para o português, não poderiam ser mais do que o resultado da aplicação da teoria gramatical latina aos dados das línguas vernáculas.

Há, no entanto, duas claras diferenças, que merecem ser destacadas, entre a tarefa dos gramáticos renascentistas e os grandes registros gramaticais do latim clássico, particularmente as Institutiones Grammaticae de Prisciano de Cesaréia (cerca de 500 AD), fonte e fundamento principal das gramáticas das línguas vernáculas. A primeira dessas diferenças está na quantidade de material disponível como apoio para a elaboração da gramática, que era abundante para Prisciano e escasso para os vernaculistas. A outra diferença está no fato de que línguas diferentes eram tratadas.

Quanto ao "material de apoio" disponível, creio que basta apontar que a gramática de Prisciano é uma espécie de coroamento dos estudos gramaticais latinos e Prisciano é tratado pelos sucessores como o representante máximo dos estudos gramaticais. Os vernaculistas, por outro lado, tinham que suportar o ônus do pioneirismo. Antes de Nebrija ou de Fernão de Oliveira, quase nada havia sido escrito sobre o castelhano ou sobre o português. Em outras palavras, Prisciano elabora sua gramática a partir de material acumulado em quase quinhentos anos de estudos gramaticais do latim, enquanto Nebrija e Fernão de Oliveira não dispunham de predecessores.

Da mesma forma, o objeto da gramática de Prisciano é o latim, enquanto Nebrija e Fernão de Oliveira elaboram, respectivamente, gramáticas do castelhano e do português. E por mais que eles queiram ver essas línguas como iguais ou, ao menos, muito semelhantes ao latim, efetivamente tratava-se de línguas diferentes. A descrição do latim presente na obra de Prisciano sustentava-se em descrições anteriores; sua tarefa era descrever uma língua bem conhecida e bastante estudada. Tanto Nebrija quanto Fernão de Oliveira tinham como tarefa descrever uma língua mal conhecida e ainda não estudada. Enquanto o trabalho de descrição efetuado por Prisciano podia ser feito (e era feito) diretamente sobre os autores da literatura latina, Nebrija e Fernão de Oliveira não dispunham de autores canônicos para sustentar suas descrições. Um dos objetivos básicos das gramáticas clássicas, desde o seu início: registrar a forma mais perfeita da língua – a língua literária – e usar a norma literária como padrão para o uso "correto" da língua, estava ao alcance de Prisciano, mas não estava ao alcance nem de Nebrija, nem de Fernão de Oliveira ou de João de Barros.

Na verdade, não é do interesse dos humanistas o desenvolvimento de teorias explicativas dos fatos gramaticais (João de Barros, por exemplo, recusa explicitamente o modo de fazer gramática dos especulativos). Seu objetivo primordial é descrever o uso lingüístico dos grandes autores do passado clássico, quando se voltam para o latim, ou o uso lingüístico de certa elite cultural ("dos barões doutos", segundo João de Barros) quando se voltam para as línguas vernáculas.

O que estou querendo apontar aqui é que as condições de produção das primeiras gramáticas das línguas vernáculas eram muito particulares: o apoio "teórico" de que dispunham seus autores provinha de descrições de outras línguas; não havia uma literatura canônica a ser usada como modelo de língua padrão; e nem sequer havia uma norma ortográfica estabelecida (o sistema ortográfico usado tinha sido criado para o latim).

Dadas essas condições, não é de estranhar que boa parte de sua atividade devesse se concentrar em cobrir as diferenças entre o latim e o castelhano ou o português, em determinar um padrão de língua "exemplar", em observar, registrar e sistematizar essa forma privilegiada de língua e em descobrir modos de projetar sobre essa língua as categorias teóricas desenvolvidas para o grego e o latim.


2. Fernão de Oliveira: um teórico da linguagem?


Muito se fala sobre a "originalidade" dos gramáticos renascentistas – particularmente da originalidade de Nebrija e de Fernão de Oliveira, enquanto se acusa João de Barros de ser submisso ao modelo latino. Eu gostaria de relativizar esse julgamento, mostrando que todos eles foram originais apenas numa direção, e que se mantiveram submissos ao modelo latino se olharmos de outra perspectiva. Vou me ater à Gramática de Fernão de Oliveira.

Creio que a originalidade da obra de Fernão de Oliveira reside justamente nos preenchimentos do vão que separa o latim do português. Em outras palavras, Fernão de Oliveira não é teoricamente original: em termos de teoria gramatical ele não faz mais do que reproduzir a teoria de Prisciano que, por sua vez, reproduz a teoria de Dioniso Trácio (séc. II a.C.) e de Apolônio Díscolo (séc. II A.D.). Fernão de Oliveira é descritivamente original, na medida em que descreve, em sua gramática, um conjunto de dados lingüísticos que nunca haviam sido descritos antes.

Esclareço essa minha afirmação.

Estabeleçamos a distinção entre gramática teórica e gramática descritiva, distinção que, embora tenha equivalentes claros em outras áreas da ciência moderna, como a Física1, por exemplo, parece nunca ser feita nos estudos da linguagem.

Deixem-me começar com uma imagem de ciência que me parece razoavelmente adequada para os propósitos deste trabalho.

O trabalho científico inicia com a delimitação de um modelo do objeto de estudos. Em outras palavras, antes de realizar qualquer atividade que se possa denominar "científica", o cientista determina (concebe, constrói, imagina, representa para si, empresta de outra área da ciência) a natureza de seu objeto de estudos. Essa concepção do objeto é assistemática e induzida por múltiplos fatores das ordens mais diversas, subjetivas ou objetivas – ideologia, sabedoria popular, conhecimentos acumulados pela atividade científica em áreas correlatas, etc.

Concebendo determinada natureza para o objeto de estudos, o cientista passa a construir representações, mais ou menos formais, de alguns de seus aspectos, que se constituem em teorias científicas.

As teorias científicas são contrastadas com a realidade e avaliadas. Se corresponderem bem aos dados empíricos, as teorias se reforçam; se não correspondem aos fatos, são alteradas ou substituídas. A ciência, então, prevê dois momentos particulares: o momento da concepção de teorias (construção de representações teóricas) e o momento da contrastação da teoria com a realidade.

Ora, a realidade é informe antes de ser organizada pela ciência. Ou seja, de alguma forma, é a teoria que organiza os dados do real. O momento da contrastação das teorias com a realidade implica, portanto, em descrição do real a partir do mesmo modelo que presidiu a construção da teoria. Em outras palavras, o teórico vai buscar na realidade (vai ver na realidade) os objetos que sua teoria diz existirem lá.

Num exemplo, a teoria da relatividade de Einstein não pode ser contrastada com os dados obtidos pela aplicação da teoria newtoniana ao mundo, e vice-versa. Não faz nenhum sentido a tentativa de ver os teoremas de Einstein num mundo newtoniano assim como não faz sentido tentar ver os teoremas de Newton num mundo einsteniano.

Em suma, as duas tarefas do cientista – construir teorias e descrever a realidade – obedecem a uma única e mesma concepção do objeto (a um único e mesmo modelo).


Creio que podemos passar à distinção entre gramática teórica e gramática descritiva.

Dito de forma geral, a tarefa da gramática teórica é o estabelecimento de uma teoria da linguagem, enquanto a tarefa da gramática descritiva é a descrição dos dados.

Construir uma teoria da linguagem significa estabelecer no objeto classes, relações e funções capazes de ordenar o caos inicial e de permitir o estabelecimento de regras para o seu funcionamento.

Descrever os dados lingüísticos, por outro lado, significa reconhecer no objeto (nas palavras e sentenças da língua) as classes, relações e funções previstas pela teoria, ordenando efetivamente esse objeto e estabelecendo as regras de seu funcionamento.

Uma coisa é dizer, por exemplo, que todas as proposições têm a estrutura tripartite "sujeito-cópula-atributo" (tarefa da gramática teórica); outra coisa, muito diferente, é identificar as estruturas tripartites subjacentes às sentenças da língua portuguesa (tarefa da gramática descritiva). Ou, num outro exemplo, cabe à gramática teórica dizer que existem palavras nas línguas e que essas palavras podem ser classificadas em nomes, verbos, advérbios, etc., a partir de suas relações com as categorias aristotélicas que supostamente ordenam as "coisas" do mundo; e cabe à gramática descritiva identificar as palavras de uma determinada língua e classificá-las em nomes, verbos, advérbios, etc., conforme sua relação com as categorias aristotélicas, isto é, conforme sua relação com as "coisas" do mundo.

Talvez a melhor maneira de esclarecer a distinção seja observar o que acontece com os estudos gramaticais nos séculos XIII e XIV. Neste período encontramos uma aparente contraposição entre os gramáticos especulativos (os modistas) e as gramáticas do latim de Prisciano (séc. VI d.C.) e Donato (meados do século IV d.C.), para ficar só com os gramáticos clássicos mais influentes durante a Idade Média.

A proposta modista, em nenhum momento, coloca em questão a descrição do latim apresentada por Prisciano. Seu objetivo era o de justificar logicamente as regras descritivas apresentadas por Prisciano (e por Donato). O trabalho dos modistas era eminentemente teórico. A descrição do latim encontrada, por exemplo, na Gramática Especulativa de Thomas de Erfurt (cerca de 1310) é, quase integralmente, emprestada de outros gramáticos latinos. O que diferencia os dois tipos de gramática é o foco: o foco de Prisciano está na descrição (e o de Donato está na natureza pedagógica da gramática) enquanto o foco de Erfurt está na explicação das regras de Prisciano por meio da lógica aristotélica. Prisciano é um gramático descritivo, que busca estabelecer as regras do latim por meio da teoria inicialmente construída por Dionísio Trácio (séc. II a.C.) e Apolônio Díscolo (século II d.C.). Erfurt é um gramático teórico, que assume a descritição de Prisciano, mas que busca novos instrumentos explicativos (teóricos) para que os dados descritos por Prisciano sejam como são. Erfurt tem por objetivo refinar a teoria de Dionísio e Apolônio. Não há conflito real entre eles, mas complementaridade.

Se associarmos a criação de uma terminologia com o estabelecimento de categorias (conceitos, noções) teóricas, poderemos ver na seguinte afirmação de Robins (1979, p.31) a constatação de que os gregos criaram uma teoria gramatical (uma ferramenta teórica de descrição lingüística), enquanto gramáticos latinos e gramáticos renascentistas apenas descreveram suas línguas com o auxílio da teoria grega.


[Os gramáticos gregos] criaram e sistematizaram uma terminologia formal para a descrição do uso clássico de sua língua, tal como era escrita e lida em voz alta (não pretenderam ir além disso); essa terminologia, traduzida e adaptada ao latim, passou a constituir os fundamentos de quase dois mil anos de teoria gramatical e de estudo do grego e do latim. Com base numa língua que nunca antes fora usada para materializar formulações metalingüísticas rigorosas, os gregos forjaram, através de estágios que podemos em grande parte reconstituir, um pormenorizado e bem articulado vocabulário técnico para a descrição gramatical.


Na Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, nos deparamos com um trabalho excepcional, criativo e original, de gramática descritiva, mas não conseguimos perceber nada de novo sobre a teoria da linguagem. Fernão de Oliveira assume integralmente a proposta de gramática teórica de Dionísio, de Apolônio e de seus seguidores, gregos e latinos.

Na verdade, não é do interesse dos humanistas o desenvolvimento de teorias explicativas dos fatos gramaticais (João de Barros, por exemplo, recusa explicitamente o modo de fazer gramática dos especulativos). Seu objetivo primordial é descrever o uso lingüístico dos grandes autores do passado clássico, quando se voltam para o latim, ou o uso lingüístico de certa elite cultural ("dos barões doutos", segundo João de Barros) quando se voltam para as línguas vernáculas.

Os primeiros gramáticos da língua portuguesa ignoram os estudos lingüísticos medievais e recuperam a gramática clássica, o modelo de gramática de Dionísio e de Prisciano.

Da mesma forma que João de Barros, Fernão de Oliveira faz uma gramática da língua portuguesa que mantém essencialmente inalterada a teoria da linguagem desenvolvida a partir da lógica aristotélica e dos estudos lingüísticos alexandrinos. Nesse sentido, enquanto teórico da linguagem, Fernão de Oliveira não é original.



3. As teses teóricas de Fernão de Oliveira.


Eugenio Coseriu, em seu ensaio sobre a Gramática de Fernão de Oliveira, insiste, mais de uma vez, em atribuir originalidade ao trabalho de nosso primeiro gramático. Na maior parte das vezes, trata-se claramente de originalidade descritiva, como vimos acima. Mas em certo ponto Coseriu nos fala de teses teóricas originais defendidas pelo gramático português. Creio que vale a pena analisar essa suposta originalidade mais de perto.

Coseriu (p. 56) nos diz2:


[Fernão de Oliveira] pronuncia-se também expressamente sobre os diversos problemas da teoria lingüística geral e da teoria das línguas, e sempre com pontos de vista interessantes e, com freqüência, muito originais. As suas teses teóricas mais importantes dizem respeito: a) à natureza da linguagem e das línguas; b) à mudança lingüística; c) à variedade da língua histórica.


As teses referentes à natureza da linguagem e das línguas são basicamente duas, estreitamente relacionadas: (i) a linguagem é um fenômeno "espiritual", mas sua realização é determinada biologicamente pelas "leis do corpo" e (ii) a linguagem é um "dom de Deus", dada por natureza, enquanto as línguas particulares são "obra humana", dadas por convenção.

Ora, estamos diante de mais uma manifestação do velho debate entre natureza e convenção já presente no Crátilo de Platão.

Segundo Joseph (1995), os gramáticos da baixa Idade Média, particularmente os modistas e nominalistas assumiam uma concepção de língua como um sistema de signos, concepção já antecipada por Aristóteles e ligada à idéia de natureza. Lá pelo final do século XIV começa a prevalecer uma concepção de língua como instituição social, mais próxima do pensamento de Platão. "a difusão desses trabalhos definiu a nova era humanista que levou ao renascimento" (p. 236).

Fernão de Oliveira tinha conhecimento, então, das propostas e dos argumentos dos contendores. A ele, bastava tomar partido no debate e apresentar seus argumentos. Não há, neste caso, uma verdadeira inovação teórica.

Não podemos esquecer também da Institutio Oratória de Quintiliano (séc. I AD) onde encontramos a idéia de que a língua consiste de razão (ratio), que é assunto da analogia e da etimologia, de antigüidade (vetustas), que lhe confere majestade, de autoridade (auctoritas), que trata das formas exemplares oriundas dos oradores e dos poetas e prosadores (da norma, se quisermos usar um termo mais recente), e do uso (consuetudo), que é, para Quintiliano, o melhor guia. Destaque-se que Fernão de Oliveira cita Quintiliano mais de uma vez.

Quanto à originalidade da tese relacionada com a mudança lingüística, que consiste em considerar que a mudança não é corrupção, o próprio Coseriu reconhece que a questão já estava posta nas mesmas bases em Varrão e em Dante Alighieri. Devemos reconhecer, no entanto, que a explicação de Fernão de Oliveira vai além das generalidades e especifica as razões da mudança numa relação estreita entre linguagem e pensamento e na mutabilidade essencial do pensamento dos homens. Nas palavras de Fernão de Oliveira:


E mui poucas são as cousas que duram por todas ou muitas idades em hum estado, quanto mais as falas que sempre se conformam com os conceitos ou entenderes, juízos e tratos dos homens. E esses homens entendem, julgam e tratam por diversas vias e muitas, às vezes segundo quer a necessidade, e às vezes segundo pedem as inclinações naturaes.

(2007 p.129, linhas 2 a 7)


A terceira tese teórica diz respeito ao reconhecimento da variação lingüística. Nas palavras de Coseriu (p. 59):


Não se contenta em estabelecer diferenças diacrônicas e 'diatópicas' (diferenças no tempo e no espaço), mas acentua também, expressamente, a diversidade social do falar e da língua e chega mesmo a assinalar, pelo menos no âmbito do vocabulário, a existência de 'línguas especiais'. "Cada um fala como quem é", "os homens falam do que fazem" e, por isso, os grupos e as camadas sociais não falam da mesma forma.


Sexto Empírico (séc. II ou séc. III AD), médico e filósofo cético de quem pouco se sabe, no entanto, já havia escrito sobre essas mesmas coisas em seu Adversus Grammaticos. Como nos diz Householder (1995, p. 101):


As suas propostas mais notáveis são a) ... b) aquelas que tratam da variação lingüística, não apenas dos dialetos (de que muitos gramáticos já haviam anteriormente tratado), mas estilos, níveis e idioletos, algo provavelmente nunca mencionado por qualquer outro escritor da antigüidade, e ele faz a mais antiga menção do papel exercido na fala pelo ajuste ao interlocutor que o falante faz em seu estilo ou vocabulário, interlocutor que, por sua vez, pode influenciar o falante com risos ou críticas. (...) O ponto central do argumento de Sexto aqui é que nem a analogia (conhecimento das flexões e classes) nem a synetheia (o uso de uma pessoa particular ou de um grupo particular) é suficiente para estabelecer a correção (hellenizein); deve-se, na verdade, conhecer muitas synetheiai diferentes, o uso de muitos falantes distintos, e estar-se pronto a ajustar a fala de modo a acolher novos usos encontrados pela primeira vez.


Como podemos ver, Sexto Empírico foi ainda mais longe do que Fernão de Oliveira no tratamento da variação lingüística. E isso, ao menos, coloca em questão a suposta originalidade teórica de Oliveira em propor que se levasse em conta fenômenos de variação. Pesa em favor de Oliveira, no entanto, o fato de que Sexto Empírico teve quase nenhuma influência sobre os gramáticos posteriores e não é claro se alguma vez Oliveira teve qualquer contato com suas idéias.


4. Conclusão.


Obviamente, não pretendi com esta minha fala diminuir a importância de Fernão de Oliveira para os estudos gramaticais da língua portuguesa. Devo dizer que reconheço seus muitos méritos: arguto observador da língua portuguesa em seus vários aspectos, genial solucionador de questões descritivas difíceis. Minha tarefa aqui, no entanto, era comentar a teoria da linguagem de Fernão de Oliveira e, confesso, só consegui ver obediência à teoria desenvolvida pelos gramáticos gregos e latinos. Descritivista inteligente e de muitos recursos, Fernão de Oliveira quase nada inovou em termos de uma teoria da linguagem.

Devo também reconhecer que, ao contrário de João Barros, Fernão de Oliveira não escreveu uma gramática tipicamente "alexandrina", isto é, uma gramática de natureza eminentemente normativa, escrita para ser usada na aprendizagem da língua "exemplar". E isso, se por um lado o torna original, por outro lado justifica a pretensão de João de Barros de ter escrito a primeira gramática da língua portuguesa.


5. Referências.

Householder, F.W. (1995) Dionysius Thrax, the Technai, and Sextus Empiricus. In Koerner & Asher (eds.) (1995) p. 99-103.

Joseph, J.E. (1995) Saussurean Tradition in Linguistics. In Koerner & Asher (eds.) (1995) p. 233-239.

Koerner, E.F.K.; Asher, R.E. (eds.) (1995) Concise History of the Language Sciences. Oxford: Pergamon.

Oliveira, F. (1536 [2007]). Gramática da Linguagem Portuguesa. Vila Real (Portugal): Centro de Estudos em Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (edição Crítica, Semidiplomática e Anastática organizada por Torres, A. & Assunção, C.).

Robins, R.H. (1979) Pequena História da Lingüística. Rio de Janeiro: Livro Técnico.

Zamora, J. C. (1995) Renaissance Linguistics in Spain. In Koerner & Asher (eds.) (1995) p. 157-161.

1 Os físicos distinguem a física teórica da física experimental. A distinção que pretendo fazer segue molde parecido.

2 Todas as citações de Coseriu serão feitas à partir da versão de seu texto recolhido na edição da Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira feita por Torres e Assunção (Oliveira 2007).