PP-IA-IP

José Borges Neto

  (UFPR/CNPq)

 

 

1. Morfologia.

 

As línguas humanas são objetos de extrema complexidade. Sua análise e descrição exigem, portanto, o uso da estratégia cartesiana do “dividir para conquistar”. Tradicionalmente, então, os estudos das línguas reconhecem no objeto “áreas de análise”, mais ou menos autônomas e estanques, que são tratadas separadamente. Entre essas “áreas” encontramos a Morfologia, que se ocupa das palavras (de sua estrutura e dos processos de formação de uma palavra a partir de outra).

O termo morfologia significa literalmente o estudo das formas e foi emprestado da biologia pela lingüística em meados do século XIX.

Intuitivamente, percebemos que as palavras possuem “partes”. Podemos reconhecer na palavra cantar a parte cant-, que se repete em cantamos, cantasse, cantaria e cantei. Do mesmo modo, em cantei podemos reconhecer a “parte” –ei, que se repete em amei, falei, abracei e conversei. Podemos, também, atribuir significado a essas “partes”, supondo que tanto o cant- de cantar quanto o –ei de amei aparecem sempre, nas várias palavras, com um mesmo significado.

É possível perceber, ainda, que essas “partes” das palavras se organizam de forma estruturada. Por exemplo, as “partes” da palavra cantávamos (cant+a+va+mos) aparecem numa ordem rígida: qualquer alteração na ordem (cant+a+mos+va, por exemplo) vai resultar numa forma não-gramatical. Num outro exemplo, podemos ter des+im+pedido[1], mas não podemos ter im+des+pedido. Podemos, então, falar de estrutura da palavra.

É tarefa da morfologia identificar as “partes” das palavras e estabelecer a sua estrutura.

 

2. Modelos morfológicos.

 

Estou entendendo por modelo morfológico uma forma teórica de conceber a estrutura de uma palavra. Em outras palavras, um modelo morfológico é um modo específico de entender a composição das “partes” da palavra de forma a descrever adequadamente o que ocorre na língua.

Há, basicamente, na literatura especializada, três modos básicos de se entender o que ocorre no interior das palavras. Há, portanto, três modelos morfológicos básicos. Quem primeiro identificou e descreveu esses três modelos foi o lingüista americano Charles Hockett (ver Hockett 1954).

 

2.1. Modelo “palavra-e-paradigma” (PP).

 

A forma mais antiga de representar a morfologia de uma língua consiste no uso de paradigmas. Um paradigma é uma tabela que reúne as formas flexionadas de uma palavra e as opõe pelas desinências. O modelo PP focaliza as oposições entre as formas de uma palavra variável mais do que sua estrutura interna.

Por exemplo, o verbo cantar do português é definido como uma palavra variável e suas variações são listadas num paradigma que contém canto, cantei, cantava, cantarei, cantou, cantasse, cantaria, cantariam, cantado, cantássemos, etc. Uma das formas é escolhida como “representante” do paradigma inteiro e é conhecida como a forma de citação do paradigma. Para os substantivos, convencionou-se usar a forma do masculino singular como a forma de citação e para os verbos, a forma do infinitivo. Assim, falamos do paradigma associado ao verbo cantar ou ao paradigma associado ao substantivo menino.

No modelo “PP”, a análise comparativa dos elementos do paradigma nos permite isolar, por abstração, as desinências. Essas desinências são “marcas” de significados secundários associados ao significado “básico” da palavra, que está contido no radical. Tradicionalmente (desde Dionísio de Trácia, no séc. I a.C.), são reconhecidas “marcas” de gênero e de número nos elementos nominais (substantivos e adjetivos, pronomes e artigos) e “marcas” de tempo/modo, número e pessoa nos elementos verbais.

Palavras que pertencem às classes dos advérbios, preposições e conjunções são ditas invariáveis porque seu paradigma apresenta um único elemento. As demais classes contêm palavras variáveis, isto é, palavras cujo paradigma apresenta ao menos dois elementos.

As palavras que apresentam os paradigmas com o maior número de elementos são os verbos, com cerca de setenta formas. Por convenção, como vimos, tomou-se a forma do infinitivo como “forma de citação” e, também por convenção, organiza-se o paradigma a partir das idéias secundárias de modo (indicativo, subjuntivo, etc.), tempo (presente, pretérito perfeito, etc.) e número/pessoa (primeira pessoa do singular, segunda pessoa do singular,..., primeira pessoa do plural, etc.).

É preciso destacar que as formas do paradigma são formas de uma única e mesma palavra e que o reconhecimento de “partes” na palavra resulta de um processo abstrativo aplicado ao conjunto das formas do paradigma. Em outros termos, neste modelo morfológico, as palavras na verdade não têm partes. A palavra é a unidade morfológica.

 

2.2. Modelo “item-e-arranjo” (IA).

 

No modelo IA, a unidade é o morfema. As palavras são entendidas como conjuntos de morfemas. As palavras são construídas a partir dos morfemas mais ou menos do mesmo modo como construímos sentenças a partir de palavras. A divisão entre processos morfológicos e processos sintáticos perde um pouco de sua razão de ser e, muitas vezes, podemos falar em sintaxe da palavra ao invés de falarmos em morfologia.

Identificamos palavras como cantei e cantávamos como conjuntos distintos de morfemas em que há um morfema em comum (o radical cant(a)) e morfemas flexionais como –ei, –va e –mos que são inseridos em lugares fixos da estrutura da palavra (o arranjo). Para deixar mais claro o processo, vejamos isso numa tabela:

 

Radical:

Vogal temática:

Modo/tempo

Número/pessoa

cant

a

va

mos

 

a

va

Æ

 

 

Æ

ei

 

As formas da palavra cantar são obtidas todas a partir de um arranjo que prevê quatro lugares, numa ordem rígida: radical, vogal temática, morfema de modo/tempo e morfema de número/pessoa. A posição do radical é preenchida com um morfema lexical (que contém o significado básico da palavra). A vogal temática é uma marca classificatória (indica a conjugação a que pertence o verbo) e nem sempre está explícita. A posição do morfema modo/tempo é de preenchimento obrigatório e a ausência de material lingüístico tem significação (o morfema zero indica o pretérito perfeito do modo indicativo, enquanto o –va indica o pretérito imperfeito do indicativo). A última posição – número/pessoa – também é de preenchimento obrigatório: o –ei indica a primeira pessoa do singular e o –mos indica a primeira pessoa do plural. A ausência de marca (o morfema zero) indica a terceira pessoa do singular.

Para o modelo IA, não faz sentido falarmos em palavras variáveis e invariáveis: todas as palavras são arranjos particulares de morfemas. Podemos, no entanto, falar de palavras monomorfêmicas, dimorfêmicas, trimorfêmicas, ..., ou polimorfêmicas se quisermos falar sobre o número de posições que o arranjo comporta.

Ao contrário do modelo PP, que considerava cantar, cantei e cantamos como formas de uma única palavra, o modelo IA vai considerá-las palavras distintas, já que constituídas de diferentes conjuntos de morfemas. Os dois modelos, então, fazem afirmações distintas sobre o número de palavras de um texto ou de uma língua: se nos guiarmos pelo modelo IA sempre contaremos muito mais palavras num texto do que se nos guiarmos pelo modelo PP.

.

2.3. Modelo “item-e-processo” (IP).

 

Encontramos com alguma freqüência nas línguas casos em que os mecanismos do modelo IA não se aplicam adequadamente. Pensemos, por exemplo, na análise que devemos dar à forma da terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser em português – é. Seria preciso identificar na palavra é o radical, a vogal temática, o morfema de modo/tempo e o morfema de número/pessoa. Não se trata de tarefa trivial. Se não quisermos voltar ao modelo PP, a alternativa é o modelo IP.

O modelo IP supõe a existência de formas básicas a partir das quais as formas das palavras, ou de partes das palavras, são obtidas por meio de processos sucessivos de mudança interna, de afixação, etc. Num exemplo do inglês, a forma unsung pode ser obtida da forma básica sing por uma mudança interna de i para u, que forma o particípio passado sung, seguida do acréscimo do prefixo un- que forma o negativo.

O modelo IP assume que a sintaxe da palavra é opaca. Em outras palavras, a morfologia não permite a visibilidade sintática. A palavra é a unidade de análise (e não há nada abaixo da palavra), tal como no modelo PP.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Estou deixando pedido sem análise, já que essa análise é irrelevante aqui.